
GÊNEROS
NÃO-BINARIES:
QUEM SÃO ELXS?
POR ONDE QUER COMEÇAR?
EU SOU NÃO-BINÁRIE
Agora que já vimos essas diferenças, é importante reforçar que não existem só homens e mulheres. Há pessoas que não se identificam com esse padrão socialmente imposto.
Essas pessoas apresentam uma identidade de gênero não-binária. Mas o que é isso?
Pessoas de gêneros não-binários são aquelas que transitam ou transcendem entre o masculino e o feminino, não se identificando estritamente a uma só opção. Dentre as categorias de gêneros não-binários, também existem aquelas pessoas que não se identificam com gênero algum.
Conheça alguns dos gêneros não-binários:
Agênero
pessoa que não possui gênero;
Gênero Fluído
pessoa que possui o gênero que muda constantemente, podendo se identificar em vários momentos da vida com diversos gêneros;
Demigênero
pessoa que possui identidade de gênero como sendo uma mescla de parcialmente algum gênero binário e parcialmente algum gênero não-binário ou parcialmente gênero binário e parcialmente agênero. Por exemplo, um homem trans não-binário ou uma mulher cisgênera gênero fluido;
Pangênero
pessoa que se identifica com uma grande gama de gêneros.
O sociólogo e psicanalista, Marcelo da Costa, explicou que as diversidades de gêneros, existem desde a aurora da humanidade em todas as culturas, uma prática comum e bem tolerada na Grécia, Pérsia, Roma e China, mas condenada entre os assírios, os hebreus e os egípcios.
Marcos Roberto Alves de Carvalho, psicólogo e mestre em psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especializado em sexualidade, gênero e diversidade pelo Pink Therapy de Londres e fundador do site Psicodiversidade, acrescentou que o gênero começa a ser atribuído à pessoa logo na gestação, quando se sabe o sexo do bebê. A maneira como falamos com a criança, as roupas que vestimos, os brinquedos que compramos e os comportamentos que esperamos e estimulamos nessas crianças são maneiras de moldar o gênero. Segundo o psicólogo, até o 24º mês as crianças já aprendem a dividir as coisas entre os estereótipos de gênero feminino e masculino e por volta de 5 ou 6 anos, já se dizem meninos ou meninas. Mas, sendo o gênero uma construção cultural, durante toda a vida é possível que uma pessoa se identifique com gêneros diferentes daquele que foi designado no nascimento ou construído na infância.
Bryanna Nask é empreendedora, gamer, Youtuber e criadora de conteúdo digital. No Youtube, se dedica a falar de diversidade e levar informação sobre o assunto. Ela se assumiu como um homem homossexual aos 12 anos, porém as dúvidas continuaram, o que trouxe desconforto em relação a sua identidade e em torno dos 16 ou 17 anos se entendeu como uma pessoa não- binária.
“Eu nunca senti que nada me contemplava. Eu não me via especificamente só nas mulheres trans ou nas travestis que eu via na televisão, eu não via ninguém que conseguia realmente descrever quem eu era”.
Marcos Roberto Alves de Carvalho nos contou que já recebeu em seu consultório pessoas que passam pela mesma situação que Bryanna passou.
“É bastante comum chegarem pessoas que estão muito confusas com relação ao gênero porque não conseguem sentir identificação com nenhuma categoria que conhecem, não se identificam com o gênero que lhes atribuíram no nascimento o que as vezes dá uma grande confusão na cabeça. Essas pessoas procuram a terapia justamente por conta disso”.
Hoje Bryanna se identifica como não-binária e explica:

"Lembro de uma situação específica no meu curso aonde estudávamos sobre transgeneridade, homossexualidade e, a escola arcaica na qual eu estudava, ainda entendia a homossexualidade como uma doença psiquiátrica, ainda dentro do CID, coisa que já saiu desde 1999. Entraram numa discussão muito tóxica na minha classe e falavam que homossexuais e pessoas trans eram doentes que não deveriam ter crianças ou ter a possibilidade de adotar crianças, pois teriam o poder de influenciar essas pessoas. Eu era a única pessoa LGBT realmente assumida na minha classe”.
Bryanna Nask, de 25 anos, Tatuí - SP.
E COMO A PSICOLOGIA LIDA COM ESSE ASSUNTO?
A psicóloga e sexóloga Maria Neide dos Reis Silva explica que em 17 de maio de 1990 a Organização Mundial de Saúde – OMS retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças.
Marcos Roberto completa que, segundo a OMS, depois de também ser classificada por 28 anos como transtorno mental, a transgeneridade deixou de ser. Hoje é classificada como incongruência de gênero. Mas o que isso significa? Segundo o psicólogo, a psicologia vem caminhando para avanços em relação à diversidade de gênero, e essa mudança significa que essas questões deixaram de ser classificadas como doenças.
Hoje, a psicologia vê essa diversidade como o que é chamado de disforia de gênero, o que significa que a pessoa sofre por não se identificar com o gênero atribuído no nascimento. Sendo assim, o que é tratado como transtorno é o sofrimento por conta dessa não identificação e não a própria condição. E é por isso que existem psicólogos e psiquiatras especializados nesse assunto.
Durante muito tempo, baseadas em preconceitos e a ideia de que o certo eram pessoas cisgêneras e heterossexuais , existiam muitos profissionais que realizavam terapias de reversão de gênero ou orientação sexual, o que começou a surtir efeitos colaterais preocupantes nos pacientes, como depressão, ansiedade e até tentativas de suicídio. Em 2009, a Associação Americana de Psicologia publicou um estudo cujos resultados mostraram que essas reversões eram danosas e não tinham evidências de funcionamento.
Sendo assim, em 2018, o Conselho Federal de Psicologia publicou uma resolução se posicionando contra a patologização da diversidade de gênero.
“Se não há doença, não há tratamento, e qualquer terapia que prometa reversão não tem validade científica, tem apenas cunho religioso e vai contra o Código de Ética do Psicólogo, que em seu artigo 2º diz:
Ao psicólogo é vedado:
e) induzir a convicções políticas, filosóficas, morais ou religiosas quando no exercício de suas funções profissionais” – explica Maria Neide.
Além de nossa conversa com Bryanna, falamos com Kal Gomes, que também se identifica com a não-binariedade de gênero.
O que poderia ser feito para que a sociedade entendesse melhor e tivesse mais respeito pela identidade de gênero de cada indivíduo?

Bryanna Nask, de 25 anos, Tatuí - SP.

Kal Gomes, de 30 anos, nascida em SP, atualmente mora em Recife - PE.
Qual conselho você daria para uma pessoa que está passando por uma transição ou que está num processo de descobertas quanto à sua identidade de gênero?

Bryanna Nask, de 25 anos, Tatuí - SP.

Kal Gomes, de 30 anos, nascida em SP, atualmente mora em Recife - PE.
Segundo Marcelo Costa, a sociedade ainda está caminhando a passos de tartaruga, pois mesmo que estejamos distantes daquilo que se define hoje como quadro clínico, é necessário existir o devido acolhimento e respeito, porque toda a incompatibilidade anunciada com arrogância só acentua ainda mais o que se constitui como sofrimento.
A pergunta que fica é: como podemos garantir o direito dessas pessoas de serem respeitadas?
“As pessoas não-binárias precisam ser integradas de maneira aceitável, pois é estranhamente absurdo quando desprovidos de qualquer tipo de conhecimento biológico, psíquico, antropológico, científico, ou psicanalítico, partimos para palpites e definições sem bases consistentes para definirmos quem é normal e aceitável” sugere Marcelo.
OS NÚMEROS DA LGBTQfobia NO BRASIL
A violência LGBTQ+ no Brasil é uma realidade. Isso é o que mostram os dados coletados por organizações não-governamentais, como o Grupo Gay da Bahia, fundado em 1980 - uma das principais ONGs que coletam dados acerca desse tipo de violência no país - já que o governo decidiu pela não divulgação de dados oficiais sobre o assunto.
Em entrevista ao jornal O Globo, em janeiro de 2018, Luiz Mott, antropólogo e fundador do Grupo Gay da Bahia afirma que os dados da LGBTQfobia no Brasil são “subnotificados”. “A falta de estatísticas oficiais, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, prova a incompetência e homofobia governamental”, disse.
Segundo pesquisa feita pelo Grupo Gay da Bahia, a cada 20 horas, um LGBTQ+ morre no Brasil por ser LGBTQ+. Em 2017, foram registradas 445 mortes - 56% em via pública, 37% em casa e 6% em estabelecimentos privados - e, em 2018, 420 mortes.

Gráfico: Grupo Gay da Bahia
Já em 2019, ainda de acordo com o Grupo, 141 pessoas foram mortas pela LGBTQfobia de janeiro a maio.
Segundo a ONG austríaca Transgender Europe, o Brasil continua liderando o ranking de países que mais matam pessoas não-cis. De janeiro a setembro de 2018, por exemplo, 271 transgêneros foram mortos em 72 países, sendo 125 mortes no Brasil.
Numa pesquisa realizada por Jackeline Maria de Souza, mestre em psicologia social pela Universidade Federal de Sergipe, Joilson Pereira, doutor em psicologia pela Univerdad Complutense de Madrid e Andre Faro, doutor em psicologia pela Universidade Federal da Bahia, concluiu-se que a LGBTQfobia é a terceira maior causa para bullying.
No Brasil, em 2016, 73% dos estudantes LGBTQ+ afirmaram terem sofrido agressões verbais e outros 36% agressões físicas- segundo a Pesquisa Nacional Sobre O Ambiente Educacional.
O que explicita o fato de que a LGBTQfobia não consiste apenas em agredir fisicamente, mas, também, e muito mais, em violentar psicologicamente.
Como dito, mensurar a LGBTQfobia no Brasil é uma tarefa complexa, visto que o governo não divulga dados oficiais dos casos que ocorrem no país, como reafirma o deputado federal do Rio de Janeiro, David Miranda - “o Brasil é o país que mais mata LGBTI+ em todo o planeta. Infelizmente os dados que temos não são oficiais e dependemos principalmente de organizações do terceiro setor que fazem esse tipo de acompanhamento”, pontua. Por organizações do terceiro setor, podemos citar as ONGs como o Grupo Gay da Bahia e a ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais.
Contudo, a LGBTQfobia foi, recentemente, criminalizada no Brasil. A “lei”que protege a população LGBTQ+, na verdade, não é uma lei propriamente dita, mas uma interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) da Lei Antirracismo (7.716/89).
Segundo Paulo Iotti, advogado que articulou os processos que resultaram na decisão do STF, “O STF reiterou julgamento anterior para afirmar que o racismo é um conceito político-social e não meramente biológico, de inferiorização de um grupo social relativamente a outro, em sistema de opressão de um grupo vulnerável por um grupo dominante no qual o grupo dominante visa desumanizar e excluir o grupo dominado. Nesse conceito a LGBTfobia se enquadra”.
Ou seja, os crimes raciais, praticados “por raça”, agora abarcam, também, a opressão por orientação sexual e identidade de gênero - todos os gêneros que a sigla LGBTQ+ abriga. “A decisão tratou de pessoas LGBTI+, sendo que esse ‘+’ foi mencionado expressamente na tese aprovada pelo Tribunal como fruto do julgamento e ele significa todas as identidades sexuais não-heterossexuais e todas as identidades de gênero não-cisgêneras não-expressamente citadas pela sigla”, explica Iotti.
Mesmo com a criminalização, “o problema não está resolvido”, como endossa David Miranda, “mas ao menos é um marco civilizatório”. Para ele, a cultura e a educação são os melhores métodos para que a sociedade abrace a diversidade, “seremos uma sociedade que aceita esse tipo de violência ou a condenamos? Se conseguirmos ao menos diminuir o número de casos de violência contra a população LGBTI poderemos dizer que tivemos um aspecto positivo”, conclui sobre a “lei”.
Iotti também acredita em consequências promissoras para os LGBTQ+, se levar em consideração os resultados da Lei Antirracismo, em voga desde 1989 - “no passado, o racismo contra negros também era praticado abertamente e hoje não é, as pessoas sabem que ele é crime e evitam ser vistas como racistas, o que já é um grande avanço, pois relativamente à LGBTQfobia, as pessoas não tinham problema nenhum em serem vistas como homofóbicas ou transfóbicas, achando que tinham um pseudo ‘direito’ de o serem”..
Todavia, deixa explícitos seu pensamento em relação à educação e cultura, assim como Miranda. “É um erro achar que a criminalização sozinha resolve tudo, de forma alguma, políticas de educação, capacitação e sensibilização social de longo prazo são indispensáveis, mas é um erro também achar que a criminalização não gera algum efeito de prevenção geral de condutas”, conclui.
TRABALHO PARA TODOS: TRANSEMPREGOS PROMOVE CONEXÕES DE PESSOAS NÃO-CIS ÀS EMPRESAS
O mercado de trabalho brasileiro pode não ser um espaço acolhedor para pessoas não cisgêneras, visto que, de acordo com a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 90% da população de travestis e transexuais do país recorrem à prostituição como única possibilidade de subsistência, devido à dificuldade de inserção no mercado de trabalho dito “formal”.
É uma grande, e falha, engrenagem social em que pessoas trans não obtém aparato suficiente para qualificação profissional, pois, muitas vezes, são negligenciadas, rechaçadas em ambientes estudantis e não são bem quistas na sociedade. Ainda de acordo com a ANTRA, 13 anos é a idade média em que pessoas trans e travestis são expulsas de casa, inclusive, existem casas de acolhimento específicas para pessoas LGBTQ+ em situação de vulnerabilidade. .
O cenário assusta, mas sempre há uma luz no fim do túnel - e esta luz foi acesa por e para pessoas não cisgêneras. O TransEmpregos é um projeto criador por Maite Schneider, Márcia Rocha e Laerte Coutinho e visa unir empresas a, nas palavras de Maite, qualquer pessoa que não seja cisgênera - “meritocracia [nas empresas] é uma mentira quando a pessoa é trans”, pontua.
Desde 2013, o TransEmpregos já conectou milhares de pessoas não-cis aos empregos, são mais de 300 empresas cadastradas no site e em média 30 vagas disponíveis semanalmente, “as empresas nos procuram e nós vamos conhecê-las. Não são todas que nos interessam, pois nossa prioridade são as pessoas trans, que já sofreram muitos estresses e foram muito machucadas”, comenta Maite.
Vídeo: Projeto TransEmpregos em parceria com Canal Pense Colorido
Mariane Clemente dos Santos, de 31 anos, é um dos milhares cases de sucesso do projeto. Graduada e pós graduada em Administração e Ciências Contábeis e também maquiadora, Mariane ficou sabendo da oportunidade de trabalhar como recepcionista bilíngue através de uma publicação no Facebook feita pelo TransEmpregos, mas teve certa relutância em enviar o currículo de primeira, “Vi a vaga no meu Facebook e eu pensei ‘não vou mandar, meu inglês não está tão bom assim’, mesmo tendo feito 8 anos de aulas”.
A vaga passou e Mariane, então, ingressou em outro processo seletivo para trabalhar como caixa da rede se supermercados Carrefour. Chegou a entregar toda a documentação e estava prestes a ser contratada, até que viu a vaga de recepcionista novamente anunciada em seu Facebook e decidiu tentar, “gente, essa vaga está me perseguindo, vou mandar currículo”, pensou.
O currículo foi enviado na sexta-feira e no início da semana, segunda-feira, ela recebeu uma ligação de uma representante da empresa, sua atual chefe, convocando-a para a entrevista - “eu gostei muito dela e ela de mim, por ela eu já estava contratada, mas teria que passar por outras entrevistas pois o trabalho era para uma terceirizada, e ela me avisou sobre o preconceito e como as empresas ainda tinham a cabeça fechada, um conselho muito útil por sinal”.
Nos dias seguintes, Mariane fez várias provas necessárias para ingressar no cargo, passou por mais uma entrevista completamente em inglês e, finalmente, foi contratada, frisando que não sofreu qualquer tipo de discriminação em seu ambiente de trabalho, “já sofri preconceito em horário de almoço, quando estava almoçando fora, voltando para casa, mas não no ambiente de trabalho”.
Hoje em dia, Mariane, que já trabalha há um ano e meio nesta empresa, tem um carinho enorme por sua equipe e, principalmente, por sua chefe, e fala com orgulho que os considera como uma família, “sempre que preciso da minha chefe ela é muito presente, eu amo toda a minha equipe e amo a liberdade que temos”.
Contudo, para as fundadoras, apenas fazer esta ponte não é suficiente, também é necessários instruir as empresas e prepará-las para acolher pessoas não-cis. O projeto também promove palestras e workshops no intuito de educar e explicar que estas pessoas não são diferentes, ou que, na verdade, nas palavras de Maite, “todos sejamos diferentes, cada pessoas é uma pessoa”.
A ideia inicial do TransEmpregos era ser um banco de currículos, mas, logo no começo do projeto, notou-se um ruído nos planos - as próprias pessoas trans pediam para sair dos empregos pois não tinham suas identidades respeitadas, não eram afetivamente inseridas nas equipes e até o uso do banheiro era uma questão. Foi aí que surgiu a necessidade de ministrar estas palestras e workshops, com o objetivo principal de “fazer entender o mínimo das questões básicas de respeito de cada pessoa e de como ela se percebe e se identifica, condição que a gente não abre mão, batalha e ensina para quem não tem contato”, afirma Maite em nome do projeto, “as pessoas trans não estão nas escolas por conta do bullying e de equipes pedagógicas que não sabem lidar e, consequentemente, terão menos capacitação ou dificuldade de acesso e capacitação e inserção no mercado de trabalho. Mudar isso também o que a gente está tentando fazer”.
Todo este trabalho de educação se faz válido quando o cenário de empresas procurando o TransEmpregos cresce, seja para aprender ou buscar novos funcionários. O projeto #AgoraVai, promovido pelo TransEmpregos no mês de agosto e sediado no campus do Google For Startups em São Paulo, tinha o intuito de diminuir os ruídos entre os RHs e as pessoas não-cis. Foram mais de 220 empresas inscritas para 30 vagas e 500 profissionais para 45 vagas, em 3 dias de inscrição - sinal que existe um interesse mútuo em aprender mais sobre o tema. “Quando começamos, as pessoas trans tinham muito medo de mandar os currículos, pois foram muito maltratadas pelo mundo corporativo, não acreditavam mais e estavam muito traumatizadas”, relembra Maite.
O mais curioso e estranhamente sensato é que o maior objetivo do projeto é encerrar as atividades. Faz sentido, se pensarmos que a não necessidade de uma instituição que promove especificamente a captação de currículo de pessoas não-cis seja sinônimo de que o mercado está mudando e que o mais importante na hora de contratar seja a capacitação profissional, não o gênero. “A gente quer, daqui 10 anos, acabar com o TrasEmpregos e fazer uma grande festa. Nossa meta quando começamos era de 15 anos, ainda faltam 10”, conta Maite. Enquanto isso não acontece, o próximo passo do TransEmpregos é se tornar internacional e adotar o nome de TransJobs.
CONTATO:
Para acessar o banco de currículos, se cadastrar como empresa, conhecer ainda mais sobre
o projeto ou simplesmente iniciar um contato, acesse o site:
AS CASAS DE ACOLHIMENTO
E A RESISTÊNCIA LGBTQ+
Pessoas LGBTQ+ em situação de vulnerabilidade social são uma realidade em nosso país, reflexo do preconceito vivido por estes indivíduos em suas casas, ambientes de convívio e em suas relações interpessoais. E isso se intensifica ainda mais quando o assunto são pessoas não-cis e não-binárias que, muitas vezes, são invisibilizadas - de acordo com a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), a idade média em que uma pessoa trans é expulsa de casa é de 13 anos.
Como dito na reportagem sobre o TransEmpregos, projeto que conecta pessoas não-cis ao mercado de trabalho, a vivência dessas em um país que negligencia sua existência pode ser bastante difícil, visto que o Brasil registra uma morte de uma pessoa LGBTQ+ a cada 23 horas - de acordo com Grupo Gay da Bahia.
Isso fomenta a necessidade da criação de espaços específicos para pessoas LGBTQ+, como as casa de acolhimento Casa Miga, em Manaus, e Casa Florescer, em São Paulo.
CASA MIGA
A Casa Miga, um espaço de acolhimento para pessoas LGBTQ+, surgiu em fevereiro de 2017 e o seu projeto foi inspirado no The Trevor Project, organização americana sem fins lucrativos que visa amparar e informar jovens LGBTQ+ sobre saúde mental, e na Casa1, projeto brasileiro de acolhimento de pessoas da comunidade.
O projeto da Casa Miga foi idealizado por Emílio Morón em parceria com o coletivo manauara Manifesta LGBT+, “eu tinha a ideia e os slides certinhos de como pensei na Casa Miga, mas não sei escrever projetos, mas o Maurício [membro do Manifesta] sabia”, contou Emílio, “eu fui falando, o Gabriel [também membro do Manifesta] foi colocado as ideias dele, assim como Maurício, que foi aprovando tudo”.
São seis coordenadores, Gabriel Mota, Emílio Morón, Lucas Brito, Gabriela Vaz, Sebastiana Silva e Vanessa Monteiro, além de outros colaboradores que somam um total de 12 voluntários.
O diferencial da Casa Miga é o fato de que é a primeira casa de acolhimento LGBTQ+ do Brasil que também, oficialmente, acolhe refugiados membros da comunidade. Atualmente, são 6 moradores na casa, mas, desde de sua criação, mais de 30 pessoas passaram por lá.
A ideia de abrigar refugiados surgiu quando Emílio entrou em contato com a ACNUR, Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, no intuito de obter dados sobre refugiados LGBTQ+ no Brasil - o que não foi possível, pois a ACNUR não obtinha esses números.
Visto a necessidade de mais informações sobre o tema, ACNUR e Casa Miga formaram uma parceria no intuito de amparar e ampliar os dados sobre refugiados LGBTQ+, já que muitos, inclusive, sofriam discriminação nos abrigos “comuns”, “nós apresentamos a versão do projeto e a ACNUR falou ‘o projeto está ótimo, mas não atende os requisitos básicos da agência, vocês precisam alterar algumas coisas e nós daremos todo suporte para isso”, comenta Emílio.
A Casa Miga recebe os refugiados que sofreram algum tipo de preconceito em outros abrigos por serem pessoas não-cis ou gays muito afeminados. A demanda é tão grande que estão passando por uma mudança de imóvel com o objetivo de acolher mais pessoas por vez.
“Existem atividades diárias como aula de português, já teve aula de teatro, a gente sempre chama pessoas para dar aulas na casa”, conta Emílio sobre a rotina dos moradores, que são sempre incentivados a desenvolverem autonomia em seu dia-a-dia, “sempre incentivamos que façam suas coisas sozinhos, a gente dá o valor da passagem e auxiliamos com informações para que consigam ter mais mobilidade, e eles vão”.
Além de atividades cotidianas, a Casa Miga orienta os refugiados para que consigam tirar os documentos brasileiros na Polícia Federal e os encaminha para o SUS em casos de enfermidades ou necessidade de hormonioterapia e acompanhamento psicológico para pessoas não-cis. Ademais, buscam sempre realizar eventos que promovam discussões acerca de temas relacionados a gênero, sexualidade e saúde mental.
A Casa Miga fica localizada na área central de Manaus, mas não pode revelar seu endereço exato por acolher refugiados, “se você é de um país que persegue LGBTQ+ e você está num abrigo, nada impede que mandem alguém para tirar você de lá”, conta Emílio.
CASA FLORESCER
A Casa Florescer, ou Centro de Acolhida Florescer, é uma casa de acolhimento para mulheres transexuais e travestis localizada no bairro do Bom Retiro, em São Paulo. O projeto foi criado em 2014 por conta da grande demanda de travestis em albergues, locais previamente pensados para abrigar pessoas cisgêneras, “o simples fato das meninas irem para um centro de acolhimento já é diferente porque uma travesti, mulher transexual ou até homem trans bater na porta pedindo ajuda é algo bastante complicado ainda”, disse Alberto Silva, gerente da Casa Florescer, “e nosso maior objetivo é cuidar da saúde física e mental”.

A Casa oferece às moradoras 3 refeições diárias, oficinas sobre cultura, mercado de trabalho e saúde para promover sua reinserção na sociedade, ampliando seu conhecimento e auxiliando na busca de um novo emprego.
Samantha, uma das moradoras da casa, trabalha como figurinista no teatro e também é palestrante, “tenho que mostrar para as pessoas que, independente do meu gênero, também posso ocupar esses espaços”, ela ainda pontua que, a estadia na casa, a ajudou a se empoderar, “antes eu tinha medo de falar, de me expressar, mas vejo que hoje estou chegando mais longe quando descobri que tenho o dom da fala”.
Contudo, o maior objetivo da iniciativa é devolver a autonomia para as mulheres, estimulando sua independência e conquista de novos espaços fora da casa, “elas têm que entender que podem estar em todos os lugares, não só aqui”, conta Alberto, “auxiliamos a buscar a escola mais próxima, postos de saúde para hormonioterapia e educação sobre ISTs, espaço culturais e tudo mais”.

Além de auxiliarem em questões de saúde, retirada de novos documentos, educação e cultura, a Casa também busca aproximar as moradas de suas famílias através da informação sobre gênero, “acionamos o conselho da região em que a família reside para que, juntos, tentemos fazer esse trabalho de sensibilização”, explica Alberto, “a ideia é que, quando a família entra em contato novamente, a gente faça essa mediação até para explicar que aqui é uma casa de acolhimento, não de prostituição, que existe um trabalho e uma equipe”.
A Casa tem uma capacidade para 30 pessoas e as novas moradoras chegam através do CREA, Centro de Referência Especializada em Assistência Social, “os técnicos de serviços do CREA ligam, perguntam sobre as vagas, se tiver disponibilidade, mandam um relatório contando um pouco sobre a menina para que possamos conhecê-la melhor e aí elas já entram”.
IDENTIDADE DE GÊNERO NÃO-CIS
Pessoas não-cis não necessariamente se identificam como trans ou travestis. A identidade de gênero é um espectro que abrange inúmeros gêneros não-binários - pessoas que não se identificam com os gêneros atribuídos socialmente (masculino e feminino). Geralmente, pessoas não-binárias possuem uma forma muito particular de expressar seu gênero no cotidiano e, por conta disso, são incompreendidos por pessoas de senso comum ou que não possuem um certo conhecimento pelo tema.
Na Casa Florescer, por exemplo, além de mulheres trans e travestis, o espaço também já abrigou pessoas não-binárias, “foi meio complicado porque as meninas trazem uma construção de pessoa não-cis muito padronizada, o que é um problema porque elas não entendem uma pessoa queer ou de gênero fluido”, conta Alberto, “na narrativa delas uma pessoa não-cis tem que ter óleo no corpo, tem que ter quadril e peitão”.
Esse cenário só comprova a falta de discussões acerca do tema identidade e expressão de gênero no Brasil. A escassez de informações e o negligenciamento do assunto é tão evidente que até pessoas da própria comunidade LGBTQ+ não têm o conhecimento necessário para conseguir compreender o próximo e, em alguns casos, de compreender a si mesmo.
Apesar desse pensamento enraizado, principalmente de mulheres que vêm de uma situação mais marginalizada, a Casa promove encontros e discussões acerca de questões de identidade e expressão de gênero.
DEPOIS DA CASA
Como dito, as casas sempre incentivam seus moradores a buscarem oportunidades para que possam recuperar sua autonomia e alcançar seus objetivos. A intenção é que busquem empregos e vão viver a vida de forma independente.
Um exemplo disso é Duda Valentino, que estava em situação de vulnerabilidade e rejeição familiar quando buscou a Casa Florescer. Em 4 semanas, com muito empenho e usando “de todas as ferramentas da casa”, segundo Alberto, estava empregada. Depois de 3 meses e meio, deixou a casa e foi viver de forma independente. Hoje, ocupa o cargo de líder de equipe da Sorveteria Ben & Jerry’s de Moema.
ONDE ENCONTRAR CENTROS DE ACOLHIMENTO NO BRASIL:
São Paulo:
R. Condessa de São Joaquim, 277
Bela Vista, São Paulo
(11) 2459-7000
Rua Prates, 1101
Bom Retiro, São Paulo
(11) 3228-0502
Rua Caetés, 440
Perdizes, São Paulo
(11) 2365-2074
CASA ABRIGO
Em breve na cidade de Araraquara, interior de São Paulo. Ainda não possuem endereço fixo, mas já possuem serviço de acolhida no Centro de Referência LGBTQIA+, localizado na Rua Espanha, 536.
A previsão de abertura da Casa Abrigo é no segundo semestre de 2020.
Rio de Janeiro:
Rua Dias da Rocha, 27
Copacabana, Rio de Janeiro
(21) 96829-0296
Rio de Janeiro (endereço não divulgado)
PESSOAS NÃO-CIS E SUAS RELAÇÕES
COM O MUNDO
Quando um indivíduo contesta padrões socialmente impostos, tanto em sua essência estética como em sua forma de pensar, suas relações interpessoais, por muitas vezes, se distanciam daquilo que é dito como “comum” e “corriqueiro”. Na verdade, não apenas sua forma de se relacionar com outras pessoas, mas, também, consigo mesmo.
Ser alguém que não se encaixa em, e luta contra, protótipos criados por uma sociedade que valida apenas o gênero cis e a normatividade é uma forma de quebrar um ciclo endossado pelo senso comum - e quebrá-lo pode ser sinônimo de mudanças na forma de lidar com as pessoas.
Desde um vínculo amoroso até uma conversa rápida com um desconhecido, as relações fazem parte de nossa realidade como seres humanos, e são incentivadas. Mas, como lidar com elas quando o interlocutor consegue visualizar, legitimar e entender apenas uma forma de ser, que não, necessariamente, é a sua?
ATÉ ONDE, E COMO, AS RELAÇÕES COM O MUNDO E COM AS PESSOAS SE TRANSFORMAM QUANDO SE É NÃO-CIS?
Conversamos com cinco pessoas, que experienciam o gênero de diversas formas, para compreender a realidade de suas relações pessoais e interpessoais.
São elas: Pedro Calderaro, não-binárie, Mad, mulher trans não binária, Du, não-binárie, Guilherme Grossi, não-binárie e Luc Sampaio, homem trans não masculino.
EQUIDADE PARA ALÉM DO PRECONCEITO EM ÁREAS QUE AFETAM DIRETAMENTE A VIDA HUMANA: A SAÚDE
A falta de informações e conhecimento sobre o público não-binário é responsável por diversos constrangimentos e questões que afetam diariamente a vida das pessoas que já não se sentem parte integrante de uma sociedade heteronormativa binária. Essas questões influenciam e mudam a forma como essas pessoas interagem e lidam com o mundo ao seu redor, como mostramos e discutimos no “A não-binariedade sem filtro e em seu lugar de fala” - onde podemos perceber isso pelos relatos das histórias de vidas contadas por essas pessoas. Quando paramos para analisar seu dia a dia e suas vidas, percebemos que além dos preconceitos vividos diariamente e todos os problemas - em sua maior parte psicológicos - que isso traz, muitas vezes não paramos para pensar sobre o quão sério isso é e realmente atinge suas vidas além do que imaginamos, como em sua saúde física, inclusive.
O motivo parece complexo e distante, já que até então está fora da nossa realidade, mas quando paramos para analisar mais de perto, é simples e fácil de ser resolvido. Tudo envolve conhecimento.
“Educação é o meio da aceitação. Tudo que não é estudado é visto como tabu. O problema é que falta estudo, falta conhecimento, falta um tanto de coisa pra começar a se abordar isso nas escolas, mas sim, se isso fosse estudado, seria muito mais aceito. Conhecimento é o caminho, sempre.” - Nathalia Delavi, 28 anos, não-binária, analista de sistemas.

O conhecimento é uma capacidade adquirida ao longo do tempo e das nossas vidas desde os nossos primeiros dias em contato com o mundo, ou seja, ninguém nasce com conhecimento. Vamos adquirindo dentro de casa, com nossos criadores nos ensinando a falar, andar, o que fazer e o que não fazer, passamos para a fase da escola, onde um mundo inteiramente novo é aberto e disponibilizado diante dos nossos olhos, no final, tudo que somos, acreditamos, respeitamos e lidamos no nosso dia a dia vêm a partir do conhecimento. É então que percebemos que onde não há conhecimento, realmente não há como ter entendimento e principalmente respeito.
A escassez de informações, dados, estudos e conhecimento, além da falta de preparo médico foi uma das principais queixas que ouvimos ao conversarmos sobre questões que deveriam ser mais debatidas e solucionadas para essas pessoas. Conseguimos identificar essa escassez claramente na elaboração e no desenvolvimento do trabalho, quando durante as pesquisas, houve uma dificuldade generalizada e muito grande para conseguir dados e estudos sobre este nicho em particular.
Por isso, foi mais do que compreensível entender quando ouvimos essas reclamações das pessoas diretamente afetadas por isso em áreas que não deveriam ter essa dificuldade. Como no acesso à saúde, por exemplo. A um cuidado de qualidade, principalmente para tratar de suas saúdes mentais, que são diariamente provadas e abatidas pela população ignorante - sem conhecimento. Esse acesso é extremamente difícil só pelo fato da saúde pública já ser dificultosa para toda a população. Para não-bináries, esse cenário se complica ainda mais: o espanto de um funcionário de hospital, a pergunta indelicada de um médico ou o olhar desconfiado de uma enfermeira pode afastar uma pessoa não-binária de ter uma qualidade de vida e atendicmento a saúde aceitáveis. A especialista em Psicologia Política, na área de pesquisa em gênero, Julia Pereira Bueno, travesti e militante do Movimento LGBT, abordou esse assunto em uma palestra para psicólogos no Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP em agosto de 2019:
“Quando você passa a se aproximar desse público, você começa a perceber a complexidade dessa demanda no âmbito da saúde e, quanto psicóloga, em pensar o que é saúde? O que é adoecer? A minha trajetória como psicóloga e como travesti me leva para esse lugar, eu era uma pessoa formada e trabalhava e quando me assumi como travesti, as pessoas achavam que eu só servia para me prostituir.”
A psicóloga e Analista do Comportamento, Erika Linard, explica que um dos principais problemas enfrentados é a falta de informação do próprios profissionais da saúde:
“Muitos profissionais, muitos psicólogos, não têm preparo para lidar com público não-binário. Os profissionais da área de saúde mental têm pouca informação sobre o que é uma pessoa não-binária e quais os desafios que essa pessoa enfrenta no dia a dia.”
Podemos entender e ver claramente isso, na pele de quem vive, quando conversamos com Nathalia Pedrosa Delavi, não-binária, de 28 anos, “Falta prevenção, falta acompanhamento, falta acesso e falta médicos bem capacitados e até mesmo psiquiatras e psicólogos para tratarem o meio trans. É muito comum ver um trans pular de psicólogo para psicólogo porque não foi bem tratado ou bem entendido. Falta médico para tratar o trans de forma geral, hormonizado ou não com respeito e qualidade.”
Uma pessoa não-binária sem apoio, base e estrutura familiar, pode adquirir gatilhos emocionais que acarretem em danos na sua construção de vida. A Dr. Marcia Atik, psicóloga e terapeuta sexual há 30 anos na área de transexualidade explica a complexidade e o cuidado para lidar com esse público: “Nós não conhecemos a dor que eles sentem. Os conflitos, os enfrentamentos, isso é de desconhecimento quase total da sociedade, por conta dos preconceitos.”
A psicóloga reforça sobre a importância do acompanhamento de um profissional de qualidade:
“Quando você começa atender esse público, você percebe que é uma questão que ultrapassa o ser ou não ser. É uma questão de identidade. Você entra em contato com uma dor muito profunda e inigualável. Nesse sentido, é muito importante que o profissional de saúde desconstrua toda os seus pré-conceitos sobre identidade, sexualidade, homoafetividade e transexualidade. Eu me considero uma pessoa melhor com essas experiências, são 30 anos trabalhando com isso, eu me reconheço totalmente diferente da Márcia que atendeu a sua primeira paciente transexual. Um preparo técnico científico é muito importante. Mas, o mais importante para o profissional da saúde é rever seus conceitos, reavaliá-los e atualizá-los dentro daquilo que ele se propõe a atender.”
Urano Zanette, estudante, de 24 anos, conta em entrevista sobre sua experiência:

"É muito difícil, para pessoas trans no geral, serem incluídas em conversas sobre saúde. Por exemplo, eu menstruo, mas não consigo ter a mesma facilidade de uma mulher cis de falar sobre e me informar sem passar por situações que neguem meu gênero. Isso faz a gente se afastar e até mesmo de procurar ajuda médica quando precisa." - e completa: "Não conheço pessoas não-binárias que estejam 100% saudáveis mentalmente. Você perde um pouco sua referência de lugar no mundo e isso abala qualquer um".
Uma das estratégias usada para diminuir os problemas com a saúde mental por alguns especialistas, é ensinar e acompanhar pessoas não-binárias desde a infância e adolescência. Para uma criança e um adolescente não-binárie, o acompanhamento psicológico é fundamental, explica Erika Linard: “Para o indivíduo não-binário é muito comum o medo, o sentimento de rejeição e perceber que as pessoas não entendem a identidade. O acompanhamento é extremamente importante para que essa pessoa se sinta acolhida e entenda que existe uma comunidade para pessoas não-binárias, por isso não está sozinha e que ela não é algo “extraordinário”, no sentido de ser estranho. Ela é diferente, mas isso não implica em ser o esquisito ou o errado.”
A especialista Júlia Pereira, levanta um ponto como ativista e vivente dessa realidade, “Quais são os caminhos que conseguimos fazer para não cair nessas mesmas histórias. Temos que pensar no que isso causa nas pessoas. Imagine uma menina que tem uma consulta médica e na hora de ir tem uma crise de ansiedade por isso e cancela a consulta. Porque lá, não perguntam se você almoçou, se você chegou bem, mas perguntam se você já fez alguma cirurgia ou quer fazer.”
ONDE ESTÁ A AJUDA?
O Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP (CRT), localizado na Vila Mariana em São Paulo, tem um ambulatório de saúde integral para transexuais. Foi criado em 2010, com objetivo de atender esse público de forma total, com respeito e bastante cuidado nos procedimentos. O ambulatório é uma parceria entre o Estado e o município de São Paulo. Essa parceria ajudou no principal problema que o ambulatório tinha. Ter essa população dentro do SUS foi uma oportunidade para incluir dentro do ambulatório, pessoas de diferentes identidades e gêneros, com várias necessidades de atendimento e cuidado. Isso foi de fato a principal batalha vencida pelas casas de saúde.
Em 2014, a prefeitura de São Paulo e o CRT abriram uma frente de atenção especial às pessoas trans. O que deu início ao programa Transcidadania, fazendo parte da Secretaria de Direitos Humanos da cidade de São Paulo. O programa Transcidadania promove a reintegração social e o resgate da cidadania para a população LGBTQ+ em situação de vulnerabilidade.
O Diretor do Ambulatório para Saúde Integral de Travestis e Transexuais, Ricardo Barbosa Martins, disse que a meta atual do ambulatório é se tornar uma Estrutura de Rede. “Falta pouco para isso acontecer, o ambulatório fica com uma superlotação em alguns setores, principalmente nos tratamentos de terapia hormonal e terapia de substituição hormonal.”
A busca da comunidade não-binária e dos profissionais da saúde continuará para atendimentos dignos e respeitosos. E que se tornem exemplos para a sociedade encarar a não-binariedade livre de preconceitos.
“Apesar da ciência reconhecer a transexualidade como não doença, a sociedade ainda não está preparada por pura ignorância sobre o assunto. Nós, profissionais, que lidamos com isso devemos não desviar de dar esclarecimentos e trazer a luz para o que é não-binariedade, porque o grande problema do transexual não é que ele quer ser de outro gênero, ele é de outro gênero e isso a sociedade precisa entender e, infelizmente, está muito distante do conhecimento comum das pessoas em geral.” - Márcia Atik.

DESMISTIFICANDO AS PERFORMANCES DE GÊNERO
A identidade de gênero é uma experiência interna de cada um; é a percepção pessoal de cada indivíduo como sendo pertencente ao gênero masculino, feminino, uma combinação dos dois ou não-pertence a ambos.
A identidade pode, ou não, ser vinculada a expressão de gênero - que é a manifestação da identidade de gênero através de características como o nome social, roupas, corte de cabelo, corpo, comportamento e outros estereótipos previamente impostos às pessoas desde o nascimento.
Por exemplo, homens e mulheres trans e pessoas não binárias podem, ou não, utilizar-vos de signos atrelados socialmente aos gêneros masculino (como barba, voz grave, cabelo curto, etc) ou feminino (maquiagem, cabelos compridos, unhas pintadas, etc) para formar sua expressão de gênero. Existem ainda, pessoas que combinam esses estereótipos num só visual, como por exemplo, usar barba, que é um signo pertencente ao gênero masculino, e maquiagem, normalmente destinado ao gênero feminino.
Para entender melhor, conversamos com algumas pessoas que vivenciam seu gênero de diferentes formas e podem exemplificar suas expressões tornando o entendimento do assunto mais humano, visual e particular.
São elas: Pedro Calderaro, não-binárie, Mad, mulher trans não binária, Du, não-binárie, Guilherme Grossi, não-binárie e Luc Sampaio, homem trans não masculino.
A NÃO-BINARIEDADE SEM FILTRO
E EM SEU LUGAR DE FALA
“Nós existimos. Estamos em trânsito e apenas nossos pés podem apertar o freio. Apenas nós podemos decidir o que somos e como queremos estar. Infelizmente já morremos assim que a gente nasce, mas seguimos lutando apesar de todas as dificuldades que vocês colocam em nosso caminho. Somos semente, somos ideias e não somos esquecidas. Sabe o ninguém não solta a mão de ninguém? Então, mesmo mortas, levamos os nossos conosco.” – Nicolle Villar Costa.
O conhecimento sobre os gêneros não-binários está crescendo aos poucos e abrangendo um espaço na curiosidade das pessoas. Porém, ainda é comum encontrarmos dificuldades ao pesquisar sobre, já que o assunto ainda é tratado como tabu. Os meios de entendimentos são vagos e escassos, não temos muitos profissionais que expliquem abertamente para a sociedade. A deficiência de informação causa males para quem realmente importa nessa questão e são os principais afetados nisso tudo: as pessoas não-binárias. Além de serem vítimas de preconceito e estranheza, a falta de informação prejudica quem está no processo de identificação de gênero. A frustração das pessoas não-binárias é causada pela falta de visibilidade que o mundo causa.

Nicolle Vilar Costa, de 27 anos, identificou-se como não-binárie quando percebeu que se identificava como homem e mulher, ao mesmo tempo.

Urano Zanette, de 24 anos, conheceu o gênero em um grupo de feminista e se identificou na hora.
Podemos ver um exemplo disso, quando conversamos com Urano, estudante universitário de 24 anos. A falta de conhecimento sobre não-binariedade fez com que Urano se assumisse como mulher hétero durante boa parte de sua vida e, apenas aos seus 20 e poucos anos, cursando a Universidade, teve seu primeiro contato com a não-binariedade. “Entrei em um grupo de feminismo interseccional e tinham pessoas não-binárias e até então não sabia o que era isso. Então procurei no Google para ler sobre e foi como ter um insight mesmo "ah, isso tem nome/explicação" e pronto.” - conta Urano que até aquele momento de sua vida nunca tinha se identificado com algum gênero específico, se sentia deslocado ao ver homens, mulheres e transexuais e não se sentia pertencente a nenhuma daquelas identidades de gênero.
“É complicado toda vez ter que ficar lembrando as pessoas não me tratarem por menina, é desconfortável, às vezes a pessoa sabe e continua por comodidade própria.” – Urano assume sua não-binariedade para a maioria das pessoas, mas mesmo com muita conversa com pessoas próximas, ainda rola a falta de entendimento e muitas vezes empatia. “Quando me descobri como não-binário, compartilhei com minha mãe, mas sinto que até hoje ela ‘não botou fé’. Com meu marido, ele não entende muito bem, mas respeita, alguns amigos me tratam normalmente. Só não posso nem pensar em falar para o meu pai.”
Nicolle Villar Costa, cearense, 27 anos, também já passou por situações desagradáveis pelo preconceito das pessoas: “Quase sempre envolvendo meu nome social. Última delas foi em um hospital, pedi para ser chamada por Nicolle e a atendente insistia em me chamar pelo meu nome de registro. Tive que fazer um “mini barraco” para que ela entendesse como funciona a questão do nome social.”
O auxílio muitas vezes parte da própria comunidade não-binária. Foi o caso de Anakin Vicent, paulista, 24 anos: “Acho que me identifiquei não-binário no primeiro semestre de 2018, onde participei de um grupo sobre a comunidade LGBTQ+ no WhatsApp e conheci Carol, uma pessoa trans não-binária (não sei se elo/ela se identifica como mulher trans ou travesti também). Não sei como chegamos no assunto, mas conversamos bastante sobre gêneros não-binários e identidade de gênero. Foi muito bacana acabar falando sobre algo tão relevante e de pouca visibilidade no próprio meio LGBTQ+, em parte por ignorância das pessoas mesmo.”
A falta de aceitação é um dos relatos mais comuns entre os personagens. Dandriel Henrique de 22 anos, se reconhece como privilegiado pelo seu processo de descobrimento ter sido totalmente aceito e abraçado pelas pessoas a sua volta – “Falei diretamente com meu pai e minha mãe e já foi tópico de conversa com diversos dos meus amigos, fiz postagens e me coloquei publicamente em diferentes espaços e redes sociais. Sou bastante assumido. Na realidade, na primeira vez que pensei que teria de me assumir para os meus pais, fechei o livro que lia e desci para falar com eles. Depois desse primeiro momento, tive que falar mais algumas vezes, aos poucos eles foram absorvendo e aceitando cada vez mais. O resto da minha família também me trata muito bem e não tenho o que reclamar dos meus amigos também não. Sou uma pessoa privilegiada e reconheço isso. Sou uma das únicas, se não a única pessoa que eu conheço que não perdeu nenhum dos seus amigos em razão desse processo (de se assumir). Mesmo os mais conservadores, nunca fui muito militante ou alguém que buscasse ‘desconstruí-los’ ou algo assim. Com a convivência deles comigo eles foram mudando também. Foi algo bem natural que só percebi anos depois, olhando para trás.”

Dandriel Henrique, de 22 anos, posando para o Dia da Visibilidade Trans.
Mesmo reconhecendo sua situação privilegiada e quase incomum no meio, o estudante de história não está por fora da realidade e consequências que a falta de conhecimento e aceitação traz à essas pessoas: “Depressão, ansiedade, tentativas de suicídio e por aí vai. Descobri isso ‘cedo’. No primeiro grupo de WhatsApp só para não-binários que entrei, (todo formado por adolescentes e jovens adultos), vi incontáveis situações de crises e pensamentos ou atitudes, se não tentativas, de suicídio. A gente lida com uma solidão interna. Mesmo quem de nós tem apoio da família e dos amigos... é o custo de ser ‘diferente’”.

A realidade também atinge diariamente e diretamente nossos outros personagens. Urano deixa claro que é duro não poder “sair do armário” para todo o mundo, “Não existem trans (não-binários) que sejam bem aceitos no mercado de trabalho ainda. Eu vivo no armário para poder conseguir emprego, por exemplo”, relata. A mesma situação, acontece com a mineira Nathalia Pedrosa Delavi, não-binária de 28 anos. Quando perguntamos sobre o conhecimento das pessoas próximas sobre sua identidade de gênero, contou “Com o pessoal do meu serviço eu nem entro no mérito de explicar, por que eu já tentei e não deu muito certo”. O pessoal tem um bloqueio contra o não definido e completa “O tempo todo há uma necessidade de definição do que você é, do que você gosta, do que você se identifica, e simplesmente não se identificar com nenhuma das opções aceitáveis pela sociedade, não é uma opção bem aceita por aí. Sempre tem aquela pergunta: ‘mas como que é isso?”
Nathalia Delavi, de 28 anos, nunca se considerou homem ou mulher. Sempre sentiu que nenhum os dois cabiam nela.
E COMO PODEMOS MUDAR PARA MELHOR ESSA REALIDADE?
A Analista de Sistemas, Nathalia, acredita que o mundo tem vários nichos, mas que o que não é visto não é lembrado. O gênero não-binário tem lutado por visibilidade cada vez mais, mas ainda está distante para as pessoas aceitarem e entenderem – “Educação é o meio da aceitação. Tudo que não é estudado é visto como tabu. O problema é que falta estudo, falta conhecimento, falta um tanto de coisa para começar a se abordar isso nas escolas, mas sim, se isso fosse estudado, seria muito mais aceito. Conhecimento é o caminho, sempre.”
Anakin também concorda que a educação é um caminho para se seguir: “A não-binariedade, por mais que existam pessoas bem informadas, ainda é pouco discutida em ambientes escolares. Mal sabem o significado de cisgênero. É muito importante que o assunto seja levado a crianças e adolescentes para a formação de um caráter mais livre de preconceitos e ignorância. Seria ótimo ter uma disciplina sobre gênero. Acredito sim que a sociedade seria mais tolerante, porém não vai ser da noite pro dia e muito menos fácil. Precisa de paciência. É uma luta diária.”
Perguntamos para Dandriel sobre a importância desse tipo de assunto ser abordado dentro das salas de aulas - “É essencial, quanto mais formos vistos enquanto pessoas, menos estigmatizados seremos. Com isso ocorre uma maior aceitação implícita. Defenderei aqui uma ideia mais transdisciplinar. Temas como esse, ligado ao cotidiano, deveriam permear a educação e as diferentes disciplinas na qual ela é dividida, como um todo, para que de pouquinho em pouquinho, lentamente, vamos sendo mais vistos.”
“Falava-se muito sobre transgênero na questão hormonal e eu sempre achei que nenhum dos dois me cabiam direito. Nem homem e nem mulher, que foi meu gênero de nascimento. Eu sempre tive um pouco de incômodo de me vestir de tal jeito, então com a não-binariedade rolou uma identificação maior e tudo isso aconteceu quando comecei a me relacionar com a minha ex esposa e ela permitiu que eu fosse mais eu” relata Nathalia sobre seu caminho até o gênero não-binário.
Para finalizar, fizemos mais uma pergunta aos entrevistados, as respostas ao mesmo tempo que nos alertam sobre o quão necessário é o despertar da nossa sociedade e de cada indivíduo para essas questões, aquecem o coração e nos lembram que: por mais que a trilha para a identificação do gênero não-binário possa ser difícil e doloroso, acompanhar outras pessoas não-binárias pode ser uma maneira de sempre lembrar que não se está sozinho!
PARA O MUNDO, SE VOCÊ PUDESSE FALAR ALGO, QUE TODOS FOSSEM TER ACESSO E OUVIR, O QUE VOCÊ FALARIA?
“Gostaria que todos se dispusessem a conhecer e conviver, mesmo que minimamente, com pessoas “diferentes”. Que destoasse do “normal”, do que é esperado. Nada muito para além disso. Acho que só isso já mudaria a cabeça e o comportamento de muita gente.” – Dandriel Henrique
“Pare de se importar demais com questões que não são suas. (...) O que muda na vida de alguém eu ser homem ou ser mulher. Meu gênero só diz respeito a mim e a quem está comigo e mesmo assim bem em partes. No fim das contas, só diz respeito a mim mesmo.” – Nathalia Delavi
“Daria para escrever um texto imenso com coisas que eu falaria. Desde ‘vocês não são os únicos que podem viver nesse mundo’ até ‘vocês não estão sozinhos’. Aliás, se eu fosse dizer uma coisa, eu diria: vocês não estão sozinhos.” – Patrick Villela.
Eu não sei... – Urano Zanette
EQUIPE

Letícia Doreto, 21 anos

Pedro Calderaro

Rodrigo Dall' Acqua

Thainá Zocolan

Orientação: Max Milliano Melo
Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi
Créditos:
SITE
Design: Letícia Doreto
Textos: Equipe
Revisão: Pedro Calderaro e Rodrigo Dall' Acqua
ENTENDA
Eu sou não-binárie:
Vídeo didático:
Vídeo e áudio: Thainá Zocolan
RESPEITE
Os números da LGBTQfobia no Brasil:
Gráfico: Rodrigo Dall' Acqua
Fonte: Grupo Gay da Bahia
Trabalho para todos: transempregos promove conexões de pessoas não-cis às empresas:
Vídeo: Youtube - Canal Pense Colorido
As casas de acolhimento e a resistência LGBTQ+:
Fotos Casa Florescer: Pedro Calderaro e Rodrigo Dall' Acqua
Pessoas não-cis e suas relações com o mundo:
Vídeo: Produção e Créditos - Sillas Henrique
CUIDE
Equidade para além do preconceito em áreas que afetam diretamente a vida humana: a saúde:
Ilustrações: João Israel
EXPRESSE
Desmistificando as performances de gênero:
Fotos e vídeo: Produção e Créditos - Sillas Henrique
SEM FILTRO
A não-binariedade sem filtro e em seu lugar de fala:
Fotos: Arquivos pessoais


